Dando continuidade ao estudo do artigo “Sexualidade e paraplegia: o dito, o explícito e o oculto", da doutora Inacia Sátiro Xavier de França* e da enfermeira Adriana de Freitas Chaves,** acompanhe, hoje, o terceiro e último eixo temático dessa entrevista: "A sexualidade como expressão da alegria de viver".
Núcleo de sentidos 3. Paraplégica só pode namorar com paraplégico
A influência da categorização e da tipificação das pessoas no contexto das relações afetivas e sexuais estabelece os limites impostos pelo próprio corpo. Os atributos negativos relacionados com a deficiência orientam a mulher paraplégica para a assunção de uma conduta amorosa seletiva que restringe a vivência da sexualidade junto aos seus iguais, conforme demonstra a verbalização:
...Estou paquerando um rapaz paraplégico e se conseguir namorar ele sei que não vai ter nenhuma barreira (Rosa).
O processo de socialização sexual aprendido e estimulado no cotidiano das práticas tende, cada vez mais, a estabelecer para os sujeitos quais os desejos, os sentimentos, os papéis e as práticas sexuais típicos de cada grupo social e quais as alternativas sexuais que suas culturas lhes possibilitam. O modo como as pessoas reagem aos outros e são percebidas por eles estimula a assunção da conduta sexual entre iguais porque se pressupõe a compreensão das dificuldades no desempenho sexual do outro(18).
O recorte discursivo revela a crença na incapacidade da mulher portadora de deficiência física despertar interesse e amor em um homem não-igual. Ao mesmo tempo revela um mecanismo de defesa para fugir a estigmatização, pois um corpo defeituoso gera forte impacto visual. E dada a influência do mito da beleza no imaginário masculino e no contexto das relações amorosas, o homem é mais exigente no que concerne aos atributos estéticos de uma mulher. Isto estimula os sujeitos desse estudo ao casamento endogâmico.
Tema III - A sexualidade como expressão da alegria de viver
Núcleo de sentidos: Quem ama o feio bonito lhe parece
Para algumas entrevistadas a paraplegia não interfere no processo de namoro, casamento, nem prejudica as relações sexuais. Suas verbalizações manifestam sentimento de satisfação e naturalização da vida afetiva:
A deficiência não atrapalha em nada o relacionamento com o parceiro. O sexo é normal como acontece com todas as outras mulheres... basta ter um pouco de paciência e deixar o preconceito de lado. Uma paraplégica pode ser uma ótima esposa, fazendo seu esposo feliz emocionalmente e sexualmente (Hortênsia).
O recorte discursivo é permeado pela ideologia que a sexualidade pode sobreviver a qualquer enfermidade ou deficiência, pois o que mais importa é a forma como o indivíduo encara os desafios impostos pela vida e como consegue adaptar-se a sua condição biológica. Para esse grupo de mulheres o casamento é uma forma de realização pessoal que envolve companheirismo, respeito e compromisso com o outro. E sentir prazer, atingir o orgasmo é uma questão de conhecimento do próprio corpo e do corpo do parceiro.
Os sentidos do discurso remetem a compreensão que a vivência da sexualidade se intensifica sob a ação do impulso erótico. E que o contato em todos os níveis físico, emocional, intelectual entre os parceiros possibilita a unificação mente-corpo e a conseqüente superação das barreiras de ordem biológica e psicológica.
Conclusão
A nossa compreensão acerca dos resultados desse estudo, aponta que os fatores que interferem na sexualidade feminina são de ordem social, ideológica, econômica, política e religiosa. Além de que as próprias características da personalidade da mulher influenciam a vivência da sexualidade.
Os fatores sociais e ideológicos derivam do inconsciente coletivo, cujas "marcas" são repassadas, de geração para geração, e que se encarregam de disseminar a ambivalência incorporada às representações sobre a mulher- o outro próximo, metade necessária, mas subordinada. E servem para negar o corpo sexuado das pessoas portadoras de deficiência dado que cristalizam a ótica que essas pessoas são assexuadas e incapazes de sentir prazer.
No campo econômico, a mulher sofre a influência do poder aquisitivo para o consumo de cosméticos e de procedimentos médicos destinados a automodificação estética, inscrevendo no corpo a norma cultural da feminidade. Se a mulher não tiver meios de se submeter a esse modelamento artificial, o corpo feminino tende a revestir-se de invisibilidade. Torna-se espaço de sofrimento e desamor. Em se tratando dos fatores políticos e religiosos, esses se coadunam para instituir culpa, pecado e naturalizar a assimetria entre os sexos e a dominação do sexo masculino sobre o feminino.
Dos discursos analisados emergiram as barreiras atitudinais ditadas pelos limites e desvantagens impostos pela lesão medular, no que diz respeito a esfera sexual, pelo mito da beleza e pelo mito adâmico que controlam e disciplinam a sexualidade feminina. O tom lacônico, as reticências e o silêncio dos discursos analisados revelam que a maioria das mulheres portadoras de paraplegia sente dificuldade em compreender e falar sobre o próprio corpo. Elas vivenciam um processo de negativação da autoimagem e do auto-conceito que institui a crença de serem pessoas sexualmente indesejáveis.
Esse processo de auto-exclusão, determinado pela baixa auto-estima e pela auto-discriminação, sinaliza o medo do fracasso sexual e a crença que a sua condição é doentia e anormal. A constelação da sexualidade no restrito campo dos atos genitais reforça o medo de uma intimidade maior com o parceiro o que as impede de vivenciar a alegria da troca.
A condição de pessoa portadora de paraplegia orienta a mulher para a assunção de uma posição não sujeita ao mito da sua assexualidade. A influência do mito adâmico na sexualidade dos sujeitos institui a culpabilização, quando da sensação de orgasmo, orienta a opção feminina pelo casamento monogâmico e endogâmico. E institui a fidelidade como condição essencial para a felicidade conjugal e a continuidade do casamento.
Por fim, o estudo chama a atenção dos profissionais da Saúde para a necessidade de desenvolver educação em saúde encampando a sexualidade como algo dinâmico e integrado à forma como cada pessoa percebe os outros e é percebida pelos outros. E sem perder de vista a compreensão das pessoas sobre amor e carinho, sobre como tentam separar a mente do corpo ou o modo como vivenciam o próprio corpo.
Em se tratando de reabilitação das pessoas portadoras de deficiência, os profissionais precisam desenvolver educação em saúde sustentada pela atuação interdisciplinar. Cada profissional envolvido no processo educativo precisa estar comprometido com o diagnóstico do impacto da deficiência sobre a saúde física e mental dos clientes e com a intervenção sobre os seus efeitos a curto, médio e longo prazo.
Fonte: Acta Paulista de Enfermagem vol.18 no.3 São Paulo July/Sept. 2005
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