Dando continuidade ao estudo do artigo “Sexualidade e paraplegia: o dito, o explícito e o oculto", da doutora Inacia Sátiro Xavier de França* e da enfermeira Adriana de Freitas Chaves,** acompanhe, hoje, o o segundo eixo temático dessa entrevista: "O sexo consentido e o sexo proibido".
Núcleo de sentidos 1. O pecado de sentir orgasmo
Os sujeitos inclusos nesse núcleo consideram a gratificação do instinto de prazer uma função que deve atender à necessidade de reprodução da espécie. Fora dessa concepção a prática do sexo se constitui afronta ao instituído:
A relação sexual é a forma dos casais formarem uma família. Deus permite que o homem e a mulher tenham relação com essa finalidade. Uma relação só pelo prazer não é abençoada por Deus. ...O orgasmo é uma forma de prostituição. (Camélia)
Em seu discurso Camélia associa sexo e prazer com pecado e indecência, fato sugestivo de que as pessoas, ao se deixarem arraigar por idéias preconceituosas, deixam de vivenciar a sexualidade como algo bom e prazeroso que complementa o ser humano. E passam a viver a relação conjugal aprisionando a própria sexualidade devido ao angustiante conflito de "pecado"(16).
Emerge, do discurso de Camélia, a idéia que a percepção do corpo como um conjunto de sistemas, com funções específicas e espacialmente definidas, contribui para que os valores dos papeis sexuais sejam transpostos para a atividade reprodutiva.Por isso, a naturalização da assimetria de poder entre os sexos, a ênfase das regras de conduta destinadas a regular a prática sexual e a reprodução estão voltadas ao ordenamento do comportamento da mulher(9).
Esta prática, fruto das marcas do inconsciente coletivo, finca suas raízes nos discursos veiculados até o final do século XIX, quando a normatização da sexualidade é enfatizada sob duas temáticas: a do casamento - considerada sadia -, e a da prostituição, em que a função libídica é considerada doentia(4-9).
Nesse período o processo de adestramento da sexualidade feminina acompanhou a instituição do casamento, prática essa defendida e expressa culturalmente por vários interlocutores. Além da influência negativa da cultura sobre o exercício da sexualidade, a igreja também se encarregou de enunciar o casamento como uma prática social para evitar a luxúria e a busca do prazer na relação sexual. Ao seguir esta linha de raciocínio a maioria das entrevistadas atribui a sexualidade um significado compatível com aquele inerente à moral cristã:
...A sociedade de hoje incentiva a liberdade sexual, mas não acho que isso seja uma coisa boa. Para mim, sexo só depois do casamento. (Camélia)
Em determinadas culturas, o prazer sexual feminino é cerceado por padrões morais que lhe atribuem uma conotação pejorativa. Nas culturas regidas pela moral cristã persiste, no senso comum, a idéia de culpa e castigo decorrentes da desobediência de Adão e Eva e a prática de correlacionar a sexualidade com o pecado original.
Apesar de Jesus Cristo ter se compadecido com a condição de inferioridade atribuída às mulheres de sua época e de não abominar o sexo, ao longo dos séculos estabeleceu-se na mente dos cristãos a seguinte sinonímia: mulher = terra = sujeira = sexo = pecado. E a Igreja persistiu advertindo os homens que a mulher é capaz de levá-los pelo caminho florido que conduz ao inferno. A influência do mito adâmico sobre a sexualidade feminina é reforçada pela figura de Maria - casta, pura, concebida sem pecado - para servir de modelo para todas as mulheres virtuosas.
Camélia coloca em cena uma concepção moralista da sexualidade em que as noções de sagrado e de profano, ditadas pelo cristianismo, funcionam como instrumentos de alienação do próprio corpo pela mulher. São instrumentos do controle social.
E é nessa perspectiva do controle social que, ainda hoje, a medicina contribui para o projeto político da Igreja disciplinando o corpo feminino para a procriação. A junção projeto fisiológico-moral dos médicos com a perspectiva sacramental da Igreja desconsidera a necessidade-capacidade das mulheres para os prazeres físicos(15) e encarrega-se de inscrever, no inconsciente coletivo a norma cultural-religiosa: Que se lance às chamas a árvore que não dá frutos.
Mas, antes de conceber e frutificar é preciso casar! O recorte discursivo em análise espelha o sentimento de culpa, de natureza religiosa, que reprime a sexualidade apoiando-se na ideologia do pecado original que atribui a desobediência de Adão à perniciosidade de Eva - mulher tentadora, voluptuosa e voraz. E expressa a separação mente-corpo instituída por alguns seguidores do cristianismo.
Núcleo de sentidos 2. Casados... até que a morte os separe
Na cultura ocidental é prática comum que as mulheres sejam socializadas incutindo a expectativa de realizar um casamento indissolúvel e ter um marido que as respeite e proteja. O posicionamento de alguns sujeitos corrobora a nossa afirmação:
...o sexo é algo importante quando se tem um marido fiel, que nos ampara. Conheço vários amigos deficientes que levam a vida a dois normal e felizes e que tem três ou mais filhos frutos do casamento, diferente dos normais que fingem, se arrependem de ter casado e se separam. (Rosa).
Os sentidos inclusos nesse recorte mantém relação com a crença na superioridade masculina no contexto do casamento e fincam as suas raízes no capitalismo, na supremacia econômica do homem e no modelo patriarcal da família que vigorou nos séculos XVIII e XIX, quando a mulher tinha que ser frágil, dependente, temerosa, precisar do apoio e da dominação de um homem forte(17).
O modelo da mulher virtuosa, frágil, cristalizado no inconsciente pessoal de algumas participantes desse estudo ignora o movimento feminista que culminou com a flexibilização dos costumes e fez com que o sexo perdesse muito do seu estigma.
Para essas mulheres a moral religiosa prevalece influenciando suas crenças e costumes. A monogamia é colocada como uma condição para manter a felicidade do casal. No silêncio do discurso se apreende que a fidelidade feminina é uma obrigação. A do homem é uma expectativa. O casamento é entendido como um evento vitalício e um fator determinante do comportamento afetivo e sexual dos cônjuges de modo que o casal deve "viver feliz para sempre". A metáfora da criação humana, atrelada a dicotomia mente-corpo, serve para sustentar o processo de dominação a que a mulher está subordinada em troca da expectativa de ter um marido afetuoso e fiel, explicar a cultura machista - que vem sendo repassada de geração para geração -, e explicar a instituição do casamento para que o homem não viva só e tenha sempre uma mulher para dele cuidar.
A ideologia inscrita no recorte discursivo eleva o casamento a condição de um contrato entre os cônjuges e as instituições que organizam o social, como é o caso da Igreja e do Estado. E como este contrato não se estabelece apenas entre os cônjuges, a cada um deles são atribuídas funções e prerrogativas destinadas a limitar seus atos. Assim, para as mulheres estudadas a fidelidade é um requisito central para a felicidade conjugal e o elemento que potencializa a continuidade do casamento.A possibilidade de separação é vista como uma quebra do compromisso de fidelidade e um rompimento com as normas, padrões, princípios e valores pactuados socialmente.
Fonte: Acta Paulista de Enfermagem vol.18 no.3 São Paulo July/Sept. 2005
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