sábado, 12 de fevereiro de 2011

SEXUALIDADE E PARAPLEGIA: O DITO, O EXPLICITO E O OCULTO- PARTE 2

Dando continuidade ao estudo do artigo “Sexualidade e paraplegia: o dito, o explícito e o oculto", da doutora Inacia Sátiro Xavier de França* e da enfermeira Adriana de Freitas Chaves,** acompanhe, hoje, o perfil social das entrevistadas e a análise e interpretação do primeiro eixo temático dessa entrevista: "A sexualidade não-dita e mal-dita".

Perfil social das entrevistadas
As participantes situam-se na faixa etária dos vinte e cinco aos trinta e cinco anos, têm instrução em nível médio e são trabalhadoras remuneradas com o salário mínimo.Todas afirmaram ter adquirido a deficiência na infância. Em relação ao estado civil, quatro mulheres são solteiras, duas são casadas e uma divorciada. Quatro mulheres afirmaram a existência de filhos e três negaram esse fato. Todas praticam o catolicismo. O perfil das entrevistadas é condizente com aquele do arquétipo da sexualidade humana, descrito pelos pensadores da Psicologia Analítica: Afrodite não tem aspirações profissionais, e isto motiva o seu desinteresse pelo estudo.
Também não anseia por criar raízes e, por isso, não se interessa muito por casamento e filhos. Se procriar, será uma mãe generosa, afetuosa, mas, pouco convencional, não fazendo deles o centro da sua vida(6).

Eixo temático I - A sexualidade não-dita e mal-dita
Nesse eixo temático os discursos dos sujeitos ora se encarregam de banalizar a sexualidade, destituindo-a dos seus aspectos afetivos e emocionais. Ora se encarregam de filtrar a influência biológica da sexualidade, associando-a com os aspectos sociais que orientam a gratificação das pulsões eróticas, tal como descrito nos núcleos de sentidos.

Núcleo de sentidos 1
Ato sexual: a expressão única da sexualidade.
Os sentidos desse núcleo associam relação sexual e sexualidade atribuindo-lhes o mesmo significado, como mostra o recorte a seguir: ...sexualidade é apenas relação sexual. É tudo a mesma coisa. (Dália).


O posicionamento dos sujeitos sinaliza que o seu funcionamento psíquico constela o tema da sexualidade atribuindo-lhe os mesmos valores do sexismo que resume a sexualidade a um ato entre duas pessoas, desconsiderando amor, paixão ou planos para o futuro, estabelecendo como critério de empatia a prática do sexo com obtenção de prazer(7). Os sujeitos desconhecem que a expressão da sexualidade pode ocorrer de diversas formas a exemplo de um simples olhar, de uma manifestação de carinho, de um toque mais íntimo e da convivência e intimidade emocional.

As entrevistadas negam o corpo sexuado. E Afrodite expõe as suas chagas: o domínio patriarcal forçou-a à submissão ou ao silêncio, pois não pode conviver com ela nem, tampouco, viver sem ela. E como Afrodite não é vingativa, cuida das suas chagas em silêncio!(6).

O posicionamento dos sujeitos pode ser assim explicado: apesar da tendência da socialização sexual de homens e mulheres ser a de orientá-los para a assunção de comportamentos ou modos de ser que encerram diferente sexpectativas sexuais, a pedagogia do cotidiano, ao mesmo tempo em que procura constituir os sujeitos,através de múltiplas estratégias e táticas, fixando uma identidade masculina ou feminina "normal", também se encarrega de fazer com que os padrões de sexualidade feminina se configurem como um produto do poder masculino. E esse se encarrega de estabelecer o que é preciso e desejável em termos de comportamento sexual da mulher.

A linguagem da sexualidade utilizada pelas participantes nesse núcleo de sentidos é sugestiva de uma fixação do modelo masculino de sexualidade, em que a docilização do corpo feminino faz com que a relação sexual se mostre como uma relação social de dominação norteada pelo principio da divisão fundamental entre o masculino ativo e o feminino passivo(8). Orientadas por estas "marcas" essas entrevistadas constelam a sexualidade no restrito campo dos atos genitais.

Núcleo de sentidos 2
A incompatibilidade entre paraplegia e vivência da sexualidade


Não bastasse o processo de controle e disciplinamento da sexualidade, algumas entrevistadas se colocam numa posição de excluídas sexualmente, dada a sua condição de portadoras de paraplegia. Os sentidos discursivos contidos nesse núcleo deixam claro os limites impostos pela lesão medular no que diz respeito a esfera sexual. E o entendimento que apesar da paraplegia não ser um fator impeditivo do ato sexual, ela impede ou dificulta a busca de um parceiro sexual, como ilustrado a seguir:

...Quem vai olhar para uma paralítica? Ninguém quer uma aleijada. (Margarida); Os homens só querem transar comigo, mas não querem nada sério por causa do meu defeito físico. (Tulipa).

O discurso dessas mulheres dá conta de como o arquétipo Afrodite permanece influenciando as manifestações da sexualidade humana. Em sua face positiva esse arquétipo orienta os seres humanos a buscarem gratificação para as suas pulsões libídicas atendendo ao instinto do prazer. Mas, em sua face negativa, a influência arquetípica motiva a eleição do belo, do esteticamente correto e eroticamente estimulante.

Numa sociedade ocidental o poder do sexo, como meio de expressão e troca entre indivíduos, deriva da construção de símbolos e da produção de significados. As normas de conduta construídas a partir do desejo sexual são inscritas nos corpos, regulando o comportamento de homens e mulheres. E disso resulta que a identidade do corpo da mulher se dá em função do equilíbrio entre os critérios beleza, saúde e juventude(9-10).

Numa digressão do relato das entrevistadas, mas sem perder o fio condutor do objeto de estudo, a face negativa do arquétipo da sexualidade humana emergiu em um relato apreendido da literatura:

Reparei em meu corpo, agora modificado, e ponderei que não tinha silhueta para competir com qualquer outra mulher. Minhas nádegas, antes volumosas, agora estavam mirradas. Minhas pernas, antes torneadas e rígidas, agora estavam flácidas, molambentas. Minha barriga, mais parecia um globo, de tão volumosa: arriara com a flacidez muscular. Estava um monstrengo!(11).

Emerge do relato, que se a paraplegia é adquirida na fase adulta o agravo emocional é de difícil elaboração, pois ocorre uma desarticulação entre a imagem social virtual e a imagem social real. Essa estereotipia confere à pessoa, agora portadora de deficiência, o sentimento de repulsa pelos atributos negativos que passa a reconhecer nos seus iguais, cujas maneiras extravagantes despreza, E, por isso, a pessoa que adquire uma deficiência na fase adulta tende a auto-isolar-se, tornar-se deprimida, hostil, ansiosa e confusa(11-12).

A construção social de um ideal de beleza, internalizado por homens e mulheres, se encarrega de eleger as diferenças simbólicas e funcionais a serem exigidas do corpo dito sensual e, portanto, considerado capaz de assegurar a troca de prazer entre os parceiros sexuais. E é esse ideal de beleza que transforma as mulheres em consumidoras de cosméticos, cirurgias plásticas e lipoaspirações para tentar atender à exigência cultural(13).

A influência da estética no comportamento sexual de homens e mulheres se encarrega de disseminar no senso comum a idéia que tão mais belos e atraentes forem os parceiros sexuais tão mais intensa e satisfatória será a sensação do orgasmo. E isto faz com que o auto-preconceito rebaixe a auto-estima das pessoas que se consideram feias. Essa possibilidade é expressa no recorte discursivo:

...O orgasmo é uma coisa impossível para uma paraplégica...Casamento dá muito trabalho e raiva para uma pessoa normal, quanto mais para uma doente assim...meu marido me largou logo após o acidente... Eu nunca mais terei relação sexual com ninguém. (Jasmim).


Para além da negativação da auto-imagem e do autoconceito os sujeitos se manifestam alvos de um processo de auto-exclusão devido a crença de que a sua condição é doentia e anormal. E disto redunda a sua crença de ser uma pessoa sexualmente indesejável. A condição de paraplégicas fazem-nas assumir uma posição não sujeita ao mito da assexualidade da pessoa portadora de paraplegia.

O discurso de Jasmim mantém relação com a idéia que os fatores culturais podem ter efeitos marcantes sobre o comportamento das pessoas e sobre a sua saúde física e mental(8). E sugere que, conforme os valores culturais, as alterações na imagem corporal podem se constituir fator de risco para a saúde mental e para a vivencia da sexualidade, especialmente quando se tratar de mulheres portadoras de paraplegia.

Além de que o recorte discursivo remete a idéia de disfunção sexual feminina, uma condição definida por alguns estudiosos da sexualidade feminina como aversão para atividade sexual, dificuldade para excitar-se, inabilidade para atingir orgasmo. Para os especialistas estudados a disfunção sexual compromete a qualidade de vida das mulheres dado que envolve determinantes biológicos, psicológicos e interpessoais(14-15).

Ao tomar por base esse conceito de disfunção sexual, entendemos que o medo de fracassar sexualmente tem relação com o discurso veiculado pela sociedade acerca da incapacidade biológica do portador de deficiência ter uma relação sexual satisfatória com alguém. O senso comum desconhece que as dificuldades ou a incapacidade da pessoa paraplégica atingir o orgasmo só ocorre se a lesão neurológica alcançar as ramificações nervosas da área genital. E se essa pessoa desconsiderar as suas disfunções e persistir em vivenciar a sua sexualidade seguindo os padrões sexuais das pessoas consideradas "normais". Não ocorrendo essas possibilidades, a mulher paraplégica precisa de maior estimulação das outras áreas erógenas e compreensão do parceiro para, como tantas outras mulheres não paraplégicas, atingir o orgasmo.

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