domingo, 3 de abril de 2011

JOVENS PORTADORES DE DEFICIENCIA: SEXUALIDADE E ESTIGMA PARTE 2


Caro leitor,
Acompanhe, hoje, a segunda parte do artigo“Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma” das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII.
Métodos
O presente artigo refere-se a um recorte parcial dos dados da pesquisa de doutorado “Vocês riem porque eu sou diferente, eu rio porque vocês são todos iguais: as dimensões da qualidade de vida em jovens portadores de espinha bífida
“5. O título do trabalho reflete a presença do estigma através de uma frase utilizada pelos jovens para diferenciar-se positivamente dos “normais”. A pesquisa teve como objetivo explorar a qualidade de vida de pacientes portadores de espinha bífida em dois serviços de referência: no Brasil e nos Estados Unidos.
A percepção, interesse e problematização dos jovens participantes em relação a sua sexualidade e seus desdobramentos na sua família, serviço de saúde e círculo de amizades motivaram o aprofundamento da temática no sentido de gerar conhecimento tanto para os mesmos e suas famílias como para profissionais de saúde que lidam com esta clientela.

A pesquisa – de onde deriva a discussão desse artigo acerca da sexualidade e a deficiência na juventude – dividiu-se em duas etapas, sendo cada uma delas referente à coleta de dados em dois serviços de saúde, ambos especializados no tratamento de crianças e jovens portadores de espinha bífida. A primeira aconteceu no Children’s National Medical Center (CNMC), em Washington, D.C., e a seguinte no Instituto Fernandes Figueira (IFF), no Rio de Janeiro. Na fase referida ao CNMC, foram incluídos no presente estudo quinze jovens, nove do sexo feminino e seis do sexo masculino, entre 14 e 20 anos, portadores de espinha bífida e usuários da Clínica de Espinha Bífida, entre março e julho de 2004. Na fase seguinte, foram incluídos dez jovens, oito do sexo feminino e dois do sexo masculino, acompanhados pelo Ambulatório de Urodinâmica do IFF entre janeiro e junho de 2005. O projeto de pesquisa foi submetido para avaliação ética e aprovado pelos setores responsáveis em ambas as instituições.
A pesquisa teve como propósito discutir a noção de qualidade de vida de maneira ampliada, adotando-se um aporte qualitativo construído a partir das seguintes técnicas metodológicas: (1) realização de entrevistas semi-estruturadas; e (2) realização de um grupo focal com adolescentes entrevistados.
A análise do material baseou-se teoricamente na abordagem microssociológica6, com o recorte das falas a partir dos domínios sugeridos por Parkin et al.7 no que concerne à qualidade de vida. Considerando que tais domínios fragmentam a experiência da vida revelando-se insuficientes como estratégia de compreensão da realidade descrita, optamos pela organização de categorias empíricas fundamentadas nos discursos dos sujeitos. Inicialmente, reconhecemos que as experiências primárias na família e no espaço de socialização secundária, representado pela escola, ganham destaque no discurso dos jovens, o que fundamenta o processo de sociabilidade e inserção social, nossa primeira categoria. A segunda categoria construída através dos dados foi denominada de autonomia e refere-se à possibilidade de articulação entre as estratégias de autocuidado e a relação com a menor ou maior ampliação dos círculos sociais. A terceira categoria, denominada de área médica, foi construída em virtude da consideração de que a vivência da doença crônica intermedia os espaços do cuidado em saúde, e seus atores em interação constroem conjuntamente significados que interferem no processo de cuidado do jovem com espinha bífida. A quarta categoria se refere às estratégias de enfrentamento do estigma e diz respeito tanto ao reconhecimento da especificidade da doença crônica e dos quadros de deficiência física ou das marcas invisíveis da doença como à maneira como o jovem administra tais especificidades. Finalmente, apesar da sexualidade não haver constado inicialmente como uma das dimensões que compõem a qualidade de vida de jovens portadores de espinha bífida, o tema se fez presente e comum nos discursos dos jovens entrevistados, principalmente nos relatos relacionados ao autocuidado, inserção social, autonomia e projeto de vida. No caso da espinha bífida, encontramos um estigma central, relacionado à sua visibilidade no corpo. Este estigma relaciona-se ao caso da aparência física ligada ao processo simbólico de conquistar e ser conquistado, tendo o corpo como estratégia de sedução ou conexão que merece uma exploração mais detalhada. Desta maneira, inclui-se como quinta categoria empírica a sexualidade. Os dados discutidos a seguir dizem respeito à análise desta categoria especificamente. Ressaltamos que os nomes atribuídos a seguir aos discursos dos jovens que participaram na pesquisa são fictícios, com a finalidade de proteger sua privacidade.
Resultados e discussão
Sexualidade e cuidado (1ª categoria)
Devido à singularidade da espinha bífida no que se refere às complicações miccionais, é impossível não pensar em sexualidade quando falamos nos cuidados que a doença requer e de suas leituras na família do indivíduo adoecido, principalmente o cateterismo vesical.
A relação entre a construção de uma visão estigmatizante pelo jovem acerca do cateterismo e as crenças familiares pode ser observada na entrevista de Sharon, uma moça norte-americana de 16 anos, que relatou ter problemas com o cateterismo. Sharon começou o autocateterismo quando tinha cerca de 8 anos, mas diz ter muito medo do procedimento desde muito nova, principalmente de inserir a sonda incorretamente e romper seu hímen, causando-lhe dor. Esta visão é compartilhada pela mãe da moça, que durante uma conversa informal anterior à entrevista com a jovem, disse que sempre alertou a filha sobre a importância dos cuidados com o cateterismo, tanto os físicos relacionados a infecções urinárias, quanto o que ela chama de “outros”, aqueles relacionados à área de manipulação.
No caso de outra jovem, o autocateterismo como marco da autonomia é interpretado como algo negativo, já que a menina tem medo de ser abandonada pela mãe após dominar seus cuidados. Aqui podemos observar duas importantes questões. Primeiro, observamos a interpretação do indivíduo adoecido da própria doença e dos cuidados que a mesma requer como vínculo central entre o jovem e sua família. Para esta jovem, a doença se torna muito mais do que um atributo que compõe sua identidade pessoal, tornando-se a característica principal que define sua identidade estigmatizada e o cateterismo, o cuidado central que esta doença comporta, sua central fonte de interação. Sendo assim, a doença toma um papel central na dinâmica familiar, tornando-se a delimitadora das interações entre o indivíduo adoecido e sua família. Visível e palpável, a doença e seus cuidados, neste caso, se colocam como o vínculo principal entre mãe e filha, sendo esta a principal fonte de troca entre a menina e sua mãe. A segunda questão que emerge com a análise é a perspectiva de que a vivência da doença e do estigma que a mesma comporta aponta para “ganhos secundários”, que permitem que o jovem se isente de inúmeras responsabilidades, protegendo-se emocionalmente da transição natural para uma vida autônoma, além de marcar novamente seu corpo como algo que não lhe pertence. Isto porque a sua concepção corporal está ligada apenas aos cuidados com a doença e as obrigações desagradáveis que a mesma requer. Sendo assim, a experiência do corpo fica limitada a, simplesmente, um corpo adoecido, necessitado de cuidados, e não um instrumento de conexão social, prazer e expressão.
Além de configurar-se como um marco na vida do portador relacionado à sua autonomia, o cateterismo também mobiliza a descoberta e o questionamento sobre a sexualidade muito antes da adolescência, já que compreende a manipulação de uma região altamente associada ao desenvolvimento sexual e a erotização. Esta manipulação intensifica questionamentos e fantasias dos próprios jovens em relação à sua sexualidade, como a presença ou falta de sensibilidade nesta região e a possibilidade de ereção e ou de ejaculação para os meninos, e para a possibilidade de perda da virgindade durante o cateterismo para as meninas.
No começo da vida do portador de espinha bífida, a criança e sua família são confrontadas com um leque de idéias fantasiosas relacionadas à sexualidade devido à repetição do cateterismo. Araújo8 identificou nestas famílias uma série de fantasias em relação a esses procedimentos, como por exemplo, o rompimento do hímen. Tendo em mente que essas crianças se desenvolvem dentro das perspectivas, crenças e valores familiares, podemos observar como os portadores podem internalizar tais fantasias, ou até mesmo a ansiedade gerada na família pelo procedimento. Caso a visão familiar sobre o cateterismo esteja influenciada por idéias estigmatizantes, o portador de espinha bífida possivelmente terá dificuldades futuras, na adolescência e até na vida adulta, no processo de aceitar e cuidar de seu corpo, bem como na compreensão das possibilidades do mesmo.
Fonte: Ciênc. saúde coletiva vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2008

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