domingo, 3 de abril de 2011

JOVENS PORTADORES DE DEFICIENCIA: SEXUALIDADE E ESTIGMA PARTE 3

Caro leitor,

Sexualidade, imagem corporal e as características desacreditáveis

O discurso dos jovens entrevistados também evidenciou que a sexualidade está altamente ligada à imagem corporal dos mesmos, já que a vivência da espinha bífida tem um impacto considerável nas experiências subjetivas e nas relações sociais que se constróem a partir das marcas corporais de seus portadores. Apesar dos jovens afirmarem que as atitudes sociais e culturais negativas que incidiram sobre seus corpos deficientes não afetaram sua percepção corporal, muitos disseram temer não ser aceitos pelo sexo oposto devido a suas diferenças
. Além disso, a procura de parceiros se torna cada vez mais difícil devido ao feedback negativo de experiências anteriores, como podemos observar neste trecho da entrevista com Cameron, um rapaz de 18 anos, que tem como marca da espinha bífida uma forte alteração na marcha, é usuário de calhas e uma adaptação no sapato.
Não estou preparado para estar dentro de um relacionamento. Fui muito rejeitado e esta é a razão pela qual não estou preparado. Muitas meninas me falaram que queriam apenas ser minhas amigas, às vezes funcionava, às vezes não, mas sempre ficava aquele sentimento de rejeição. (Cameron, 18 anos).
A fala de Cameron reflete nitidamente o processo de construção de uma identidade deteriorada pelo estigma, ou seja, pelas marcas da doença. Isto porque, se entendemos a subjetividade como um processo interacional, os intercâmbios sociais negativos, principalmente o sentimento de rejeição, podem causar distorções consideráveis na identidade do jovem. Durante a adolescência, a experimentação com a sexualidade nestas interações sociais percebidas como negativas pode ter ainda conseqüências mais graves, já que durante esta fase o sujeito busca com maior intensidade a aceitação social e o sentimento de pertencer e participar ativamente do grupo.
É importante ressaltar que a construção da identidade pessoal está diretamente vinculada à construção da imagem corporal e da auto-estima, principalmente na fase da adolescência, quando questões relacionadas à intimidade, desejo e sexualidade afloram. Helman9 discute a construção da imagem corporal através das interações sociais: O corpo social é uma parte importante da imagem do corpo, pois fornece a cada pessoa uma base para perceber e interpretar suas próprias experiências físicas e psicológicas. É também o meio através do qual a fisiologia do indivíduo é influenciada e controlada pelos princípios que reagem à sociedade em que vive9.
A partir desta perspectiva, é importante pensar como os jovens portadores de espinha bífida sofrem pressões culturais sobre seu corpo, bem como se sentem quando confrontados com a realidade de que este corpo não se adéqua aos padrões culturais impostos pela sociedade. Esta ligação entre identidade pessoal, imagem corporal e sexualidade está fortemente marcada no discurso das meninas entrevistadas, já que a mulher portadora de deficiência não se encontra isenta das influências culturais e mensagens que constroem um determinado modelo de beleza. Por razão de suas deformidades, a posição como mulher fica praticamente impossibilitada. Assim, ela passa a ser invisível, e as possibilidades de exercer e expressar sua sexualidade de maneira plena, buscando o prazer físico e psíquico, se torna inconcebível pela sociedade e em muitos casos até por ela mesma. É interessante observar que esta visão da mulher portadora de deficiência como um ser incapaz de exercer sua sexualidade transborda até os tratamentos de profissionais especializados nos cuidados de deficientes. Isso pode ser observado no caso de Carmem, que celebra a transformação de seu corpo de menina para um corpo de mulher, porém não encontra apoio dentro do serviço de saúde para acompanhar esta transformação e adequar o material utilizado para suportar sua coluna: Olhe pra mim, meus peitos estão crescendo, quero mostrá-los, mas este colete não me deixa. (Carmem, 17 anos). Podemos acrescentar que esta estratégia de infantilização, ou negação do desenvolvimento corporal, social e psíquico do jovem, apresenta-se como um modo de manter este jovem em uma posição de fragilidade, desqualificado e, conseqüentemente, de “não-pessoa”. Dentro desta mesma dinâmica de padrões e cobranças do corpo, encontramos a perspectiva do corpo doente como incapaz não apenas de se enquadrar na sociedade, mas também de engajar-se em um relacionamento ou de inspirar interesse. Um exemplo disso é o relato de Shannon; sua mãe invadia seu espaço, ligando para garotos do colégio, oferecendo a filha como acompanhante para os bailes da escola, já que acreditava que a filha não era capaz de atraí-los sozinha. Ela ligou pra toda a minha agenda. Um cara veio até a minha casa e eu nem sabia quem ele era. Foi vergonhoso. (Shannon, 19 anos). Em um estudo sobre deficiência e imagem corporal, Taleporos e McCabe10 descrevem a imagem corporal da mulher portadora de deficiência a partir de um processo relacional, onde pessoas com deficiências idênticas possuem diferentes sentimentos e atitudes em relação ao seu corpo devido a fatores sociais como educação, suporte social e atitudes sociais reais e percebidas. Deste modo, o indivíduo que cresce com seu corpo sendo desvalorizado pela sociedade aprende a se desvalorizar e, conseqüentemente, cria uma imagem corporal errônea e negativa. No caso dos jovens entrevistados, o feedback da sociedade no que diz respeito à sua sexualidade reforça a mensagem do corpo adoecido como um objeto inadequado, impuro e patético. No caso de Andrea, uma jovem norte-americana, seus companheiros de turma fizeram uma aposta para ver se algum menino tinha coragem de namorá-la. Segundo a jovem, estas situações são comuns para portadores de deficiência e, em seu caso, a sociedade muitas vezes lhe mostrou que seu corpo não se encaixava no ideal social de beleza devido às marcas corporais e, por isso, o lugar de namorada, mulher ou mãe lhe era proibido.
No discurso de jovens brasileiros, a dificuldade em adequar-se aos padrões de beleza se apresenta de maneira mais expressiva. A autopercepção não depende puramente do sujeito, mas também das influências da mediação do outro, bem como do condicionamento cultural, ou seja, dos padrões de beleza que a sociedade, onde o indivíduo se encontra inserido, impõe. É possível perceber que a sociedade brasileira contemporânea demonstra um crescente interesse no alcance do corpo perfeito e cada vez mais mulheres e homens se submetem a torturados esforços para obtê-lo. Segundo Del Priore11, a beleza institui-se como prática corrente, pior, ela consagrou-se como condição fundamental para as relações sociais. Banalizada, estereotipada, ela invade o quotidiano através da televisão, do cinema, da mídia, explodindo num todo o corpo nu, na maioria das vezes ou em pedaços, pernas, costas, seios e nádegas. Nas praias, nas ruas, nos estádios ou nas salas de ginástica, a beleza exerce uma ditadura permanente, humilhando e afetando os que não se dobram ao seu império.
Com os padrões de beleza sendo cada vez mais exigentes, a imperfeição estética do portador de deficiência torna-se ainda mais visível e, conseqüentemente, menos aceitável. No seguinte trecho, quando solicitado a descrever-se, José demonstra sua concepção do corpo perfeito e o desejo de possuí-lo em total oposição à sua realidade: Ah eu diria a maior mentira, sou moreno, alto, forte, tenho olhos azuis. Às vezes no MSN (programa virtual de mensagens instantâneas) eu faço isso. (José, 15 anos). Apesar de não mencionar as marcas decorrentes da espinha bífida, o mesmo jovem narra as dificuldades de encontrar uma namorada devido ao fato de encontrar-se longe de uma estética ideal: Mulher é difícil. Esses dias elas tão muito exigentes, querem um alto moreno, ou loiro de olhos azuis. Aí eu falo: Ah, o que é isso? Mulher é muito exigente às vezes. Quem quer um magro de óculos? (José, 15 anos).
Destaca-se no discurso do jovem a tecnologia de comunicação como uma importante questão para a discussão da administração das marcas estigmatizantes visíveis na atualidade. O uso da Internet como espaço de socialização, principalmente para jovens, cria um universo extremamente tentador, apesar de muitas vezes isolador para os portadores de deficiência. Neste espaço, com auxílio da distância física e da falta do contato visual, o jovem pode engajar-se em diferentes comunidades virtuais, criando a ilusão de amizades, encontros e namoros. Conforme vemos na fala de José, o jovem pode romper com a realidade de sua condição e assumir outra identidade. Contudo, apesar do contato virtual ser cada vez mais comum na atualidade, este pode representar alguns problemas quando se discute o indivíduo estigmatizado. É importante mencionar que, apesar de prazeroso, o universo virtual não substitui as interações sociais tradicionais. Assumir uma identidade social diferente da realidade não se caracteriza como uma estratégia positiva de enfrentamento do estigma vivido.
A imperfeição corporal também se encontra negativamente relacionada à sexualidade devido ao fato de que a exploração da mesma coloca em maior evidência as marcas, desvios e imperfeições. Sendo assim, encontramos a questão da repressão da experiência sexual, do prazer e do contato com o sexo oposto devido à necessidade de manter em segredo atributos desacreditáveis, ou seja, aqueles que são potencialmente fontes de estigma, porém não são visíveis à pessoas próximas ou desconhecidas. Eduarda, que diz não haver despertado para o sexo, apesar de inúmeros relatos de situações que demonstrou este interesse, nos conta que evita ficar excitada já que isto lhe causa a perda de urina e a possível revelação de outras marcas da doença: Eu sou virgem, mas quando tá ficando, beija e fica excitada acontece, e eu evito de ficar excitada. (Eduarda, 19 anos). Esta manutenção voluntária da distância, empregada como estratégia para o encobrimento dos atributos desacreditados, é descrita por Goffman6 como uma técnica de controle de informação que limita a quantidade e a intensidade de experiências do jovem. Recusando ou evitando brechas de intimidade, o indivíduo pode evitar a obrigação conseqüente de divulgar informação. Ao manter relações distantes, ele assegura que não terá que passar muito tempo com as pessoas porque, como já foi dito quanto mais tempo se passa com alguém, maior é a possibilidade da ocorrência de fatos não previstos que revelam segredos6.
Fonte: Ciênc. saúde coletiva vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2008

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