Caro leitor, acompanhe, hoje, a quarta parte do interessante artigo“Jovens portadores de deficiência: sexualidade e estigma” das pesquisadoras Ana Helena Rotta SoaresI, Martha Cristina Nunes MoreiraI e Lúcia Maria Costa MonteiroII. Veja nesse artigo as discussões a respeito da qualidade da vida de jovens portadores de ESPINHA BIFIDA em duas culturas: brasileira e norte-americana.
A sexualidade do portador de deficiência física através do olhar da violência
Segundo Chauí12, podemos considerar a violência sob dois ângulos específicos: (1) através de uma relação hierárquica de desigualdade com a finalidade de dominação e opressão; e (2) por uma ação que objetiva e coisifica o ser humano. Na segunda definição, encontramos as práticas de negligência que levam à passividade, silêncio e anulação do indivíduo.
Segundo Chauí12, podemos considerar a violência sob dois ângulos específicos: (1) através de uma relação hierárquica de desigualdade com a finalidade de dominação e opressão; e (2) por uma ação que objetiva e coisifica o ser humano. Na segunda definição, encontramos as práticas de negligência que levam à passividade, silêncio e anulação do indivíduo.
Ao observar a potencialidade de violência, em situações onde agressor e vítima apresentam desigualdades no que diz respeito a suas condições, habilidades e poder, nos deparamos com a discussão do deficiente físico como vítima de violência. Tinha um atendente que era meu primo. Ele não fazia seu trabalho dentro dos padrões que devia.
O banho era uma grande questão, porque ele era homem e você sabe. Ele era mais velho, não me sentia à vontade. Chegou a um ponto que eu raramente tomava banho, e isso não fica bem, muito desagradável. Ele me lavava para ir a escola ou sair e eu odiava isso porque preferia tomar banho, mas eu fiz o que tinha que fazer. (Shannon, 19 anos).
O banho era uma grande questão, porque ele era homem e você sabe. Ele era mais velho, não me sentia à vontade. Chegou a um ponto que eu raramente tomava banho, e isso não fica bem, muito desagradável. Ele me lavava para ir a escola ou sair e eu odiava isso porque preferia tomar banho, mas eu fiz o que tinha que fazer. (Shannon, 19 anos).
O discurso de Shannon reflete exatamente a visão do não-humano, destituída até mesmo de sua posição como mulher. O fato de seu cuidador ser um homem mais velho, que é seu primo, é assumida como insignificante em decorrência da diferença que seu corpo comporta. A jovem não é considerada como uma jovem mulher, envergonhada e assustada com o contado íntimo e indesejado com o sexo oposto. Segundo Goffman6, a pessoa estigmatizada não é vista como completamente humana, levando a sociedade a fazer vários tipos de discriminações através das quais se reduzem suas possibilidades. A única característica a ser observada e levada em conta no portador de deficiência é seu lugar como pessoa em desvantagem, um ser incompleto, sem desejos, medos ou possibilidades comuns a outras mulheres e homens.
Esta percepção estigmatizante está exemplificada também nos cuidados com a higiene pessoal de Shannon, pois, as “não-pessoas”, como os animais, não carecem de cuidados diários de higiene. Assim, negligenciada, a jovem passava longos períodos sem banhos e também sem qualquer acesso à pia ou ao espelho do banheiro. A experiência de violência, conforme exemplificada neste caso, se apresenta principalmente através da negação da qualidade de humano da jovem e, conseqüentemente, da omissão em termos de prover as suas necessidades físicas e emocionais. Sua “anormalidade” corporal configura um impedimento irreparável e absoluto para a inspiração de qualquer desejo sexual ou afetivo do outro e, assim sendo, não existe a necessidade de qualquer cuidado com o corpo, seja este referente à aparência estética ou à higiene. Da mesma maneira, não existe qualquer consideração dos possíveis sentimentos de curiosidade, exploração, erotização ou desconforto relacionados ao toque masculino.
Nos casos onde os jovens manifestam sua sexualidade, a mesma é percebida como algo grotesco, perverso e potencialmente perigoso. No universo da posição do deficiente em sua família e na sociedade em geral como um ser sexual, nos deparamos com a administração do portador de deficiência, de seu corpo e de sua sexualidade através das informações oferecidas sobre seu espaço social e sua experiência. Segundo Foucault14, a sexualidade incorpora uma visão de que a mesma não se limita, e por isso mesmo não deve ser compreendida como um impulso individual a ser contido; porém, precisa ser subordinada e disciplinada a fim de servir ao controle social.
Na leitura de Giddens da visão “foucaultiana” sobre sexualidade, esta se apresenta como um instrumento de gerenciamento social, inserido em um sistema que busca a ordem pública13. No século XVIII, o sexo se torna uma questão de “polícia”, no sentido de fortalecer e aumentar a sabedoria sobre o tema com o fim de regulamentar suas práticas e estabelecer a participação do Estado como administrador das mesmas: […] cumpre falar de sexo como uma coisa que não deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se14.
A articulação entre a produção de saber e as estratégias de poder, via disciplina no campo social, é fundamental na discussão acima. A sexualidade se insere nesta perspectiva como um dispositivo disciplinar de controle dos corpos. Principalmente no caso das meninas, se fez evidente a questão da sexualidade disciplinada pela família e sociedade, tendo como razão central o medo de violência sexual que está fundamentada por informações sobre a incidência de violência contra mulheres portadoras de deficiência. A prevalência da violência contra mulheres portadoras de deficiência tem sido vastamente documentada na América do Norte15. Sua situação de vulnerabilidade e possível exploração é uma importante temática e discussão essencial para a garantia dos direitos dos portadores de deficiência. No entanto, nossos dados demonstraram que a percepção de perigo pode servir não apenas como um alerta, mas como uma estratégia de controle, infantilização e negação da sexualidade dos portadores de deficiência, fazendo desta discussão de violência e vulnerabilidade mais um instrumento de submissão dos mesmos. O discurso social excessivo acerca da posição da mulher deficiente através de uma visão de alerta, de antecipação da fragilidade ou de vulnerabilidade da mesma reforça e reproduz a lógica de preconceito da posição do portador de deficiência dentro do universo sexual e erótico. O corpo deficiente se define, principalmente, como objeto de violência, repressão e submissão, e não como um instrumento de expressão e prazer. O corpo deformado pela doença se encontra distante do modelo de beleza socialmente aceito e procurado; assim, o interesse do “outro” por esse corpo passa a ser interpretado, tanto pela sociedade em geral, como pela família do portador de deficiência, como um distúrbio, e não uma manifestação do desejo e da sexualidade humana. Sendo assim, a família busca proteger este jovem de possíveis situações de abuso através da negação do desenvolvimento da sexualidade do mesmo. Esta questão está refletida no discurso de Carmen, uma jovem de 17 anos que se emociona ao relatar sua dificuldade em se relacionar com rapazes de sua idade devido aos cuidados e preocupações de sua mãe: Três letras… m-ã-e. Ela não quer que eu tenha um namorado. Ela tem medo que eu fique grávida e de outras coisas ruins que não quero falar.
No Brasil, apesar da repressão e da limitação das experiências de sexualidade aparecerem como estratégias de disciplinização do corpo e de contenção do estigma produzida pelos próprios jovens, eles também retratam a família como possível repressor. No caso de Laura, as informações oferecidas pela mãe sobre suas possibilidades de conexão amorosa e sexual eram permeadas por sentimentos de dificuldade e insegurança relacionados à sua marca desacreditável, antecipando a rejeição do outro em função das diferenças e alimentando as fantasias criadas em torno da sexualidade do jovem portador de deficiência. Apesar disso, a jovem enfrenta seus medos e, ao explorar sua sexualidade, se depara com uma realidade muito diferente da qual foi socializada: Eu não contei pra minha mãe que eu perdi a minha virgindade, eu tenho muito medo. Aí minha mãe sempre fala que por eu ter esse problema vai ser mais difícil pra mim, mas eu tive que superar isso e eu sei que não é. A minha mãe fala que vai ser muito difícil pra mim me relacionar com meu namorado porque eu uso fralda. E eu descobri que não é. (Laura, 17 anos).
Para Goffman6, o processo de administrar o estigma instaurado através do controle ou da manipulação de informações para com os filhos é comum quando observamos famílias com filhos portadores de diferenças: […] podem-se considerar as crianças da casa não só como perigosos receptáculos da informação mas, também, como tendo uma natureza tão frágil que tal conhecimento poderia afetá-lo seriamente. No caso específico da espinha bífida, este processo se intensifica, visto que o jovem, além de ser o foco de controle e informação, é também a razão dos segredos. Apesar deste caso bem sucedido, o extremo temor de rejeição pelo parceiro é uma característica norteadora da fala dos jovens entrevistados. A distância entre o corpo ideal e o corpo deficiente parece subsidiar os temores que refletem também os sentimentos de autoconfiança e competência dos jovens. A própria Laura ilustra esta questão quando nos diz: O problema mesmo é a sonda. Sei lá, pode pensar: Ah você não serve, você é doente. Achar que as mulheres da rua são melhor porque não tem problema. (Laura, 17 anos).
Fonte: Ciênc. saúde coletiva vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário